quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Do Brasil ao Quênia com uma borboleta na bagagem

Via Época SP

Juliano (dir.) e a borboleta amarela que levou do Brasil ao Quênia para servir à população local

Uma foto vista ao acaso na internet fez o tecnólogo projetista Juliano Pappalardo ir de São Paulo a Kisumu, no Quênia, com a intenção de ajudar pessoas usando um objeto criado por ele. É claro que entre São Paulo e Kisumu houve uma miríade de ideias, inspirações, dificuldades e esforços até que Juliano pudesse desenvolver o objeto e chegar com ele naquela cidade africana. A foto vista por ele era a de duas mulheres em uma bici-táxi, um táxi com lugar para duas pessoas movido por uma bicicleta. Aquela imagem inspirou-lhe uma ideia ainda seminal, sem cara definida, de criar algo que pudesse ser acoplado à bike, como uma pequena carreta, e que fosse utilizado para transportar pessoas. Isso foi em 2006, quando Juliano tinha 20 anos e ainda tentava entender que ideia era aquela, que criação era aquela cuja forma e utilidade ele apenas intuía. As respostas foram aparecendo conforme ele foi tateando o caminho e fazendo experiências. Usou dinheiro do próprio bolso para desenvolver seus protótipos – dez ao todo. Montou uma oficina em casa, fez curso para aprender a mexer em máquinas específicas, pesquisou modelos existentes, dedicou-se a estudar cada movimento e função do invento. A princípio, a carreta acoplada à bicicleta serviria apenas para carregar pessoas. O projeto, contudo, evoluiu, e tornou-se multiuso: pessoas e objetos poderiam ser facilmente transportados no engate desenvolvido por Juliano, que batizou a criação de “borboleta”, devido ao seu formato. Foram necessários quatro anos de trabalho até que o inventor chegasse à forma final de sua criação. Kisumu, no Quênia, viria logo depois, em meados de 2010, quando Juliano se inscreveu em um concurso promovido pela ONG Cycling out of Poverty, com sede na Holanda. O objetivo do concurso era desenvolver objetos que ajudassem os quenianos a otimizarem o uso da bicicleta. A borboleta de Juliano foi selecionada, e ele viajou ao Quênia para, em parceria com estudantes de design de outros países, adaptar o projeto às necessidades dos moradores de Kisumu. Chegando lá, porém, o cenário não era o que ele esperava encontrar. Juliano precisou refazer seus planos num curto espaço de tempo para, finalmente, atingir seu objetivo de ajudar as pessoas com sua borboleta. Mais uma vez, o inventor teve que seguir sua intuição seminal, aquela mesma de 2006 que, quase cinco anos depois, o colocaria ali, naquela pequena cidade do Quênia.

A foto vista na internet por Juliano e que o inspirou a criar a borboleta

Que foto foi essa que despertou sua atenção?

Em 2006, eu estava no trabalho olhando coisas na internet enquanto esperava um amigo para irmos embora. Eram duas mulheres na foto – se fossem dois homens no triciclo, talvez não tivesse me chamado tanto a atenção. Eu vi aquilo e fiquei com vontade de construir algo parecido. Eu via a utilidade daquele bicitáxi. Fui pesquisando mais sobre o assunto, desenhando projetos.

Como você chegou no conceito do engate?

A ideia foi migrando de um triciclo para algo que você pudesse colocar na bicicleta. Minha visão era desenvolver algo para carregar uma pessoa. O primeiro conceito era um triciclo, depois eram duas rodas em uma bicicleta. Aí eu pensei em fazer um reboque com estrutura independente, que pudesse ser atrelado à bicicleta e que não fosse necessário mexer na estrutura dela. O primeiro reboque que eu fiz era super complexo e não articulava na lateral. Eu não pesquisava na internet pra saber se havia reboque ou não, era tudo intuitivo e muito fora do que poderia dar certo – o que dá certo você já vê na internet. Eu fiz uns 10 protótipos.

As pessoas achavam que você estava viajando?
Todo mundo. Eu mesmo achava (risos). Eu sabia que a ideia não estava encaixada na sociedade. Era algo muito dissonante. No fundo de mim eu sabia disso, mas eu estava entusiasmado com aquela ideia, de fazer ela chegar a uma coisa útil.

Você tinha alguma certeza interior de que ia sair algo dali?

Com o tempo comecei a adquirir essa convicção. A certeza que eu tinha era que o número de ciclistas ia aumentar e que se eu projetasse algo que fosse ajudar os ciclistas, daria certo. Eu sabia que a ideia tinha potencial, só que eu precisava adaptá-la. Com o tempo, eu comecei a pensar que, mais importante que carregar pessoas, era carregar materiais. Isso tudo foi um processo.

Quais foram os passos importantes nesse processo?
Em 2009, 2010, eu já tinha deixado de trabalhar em estágios onde eu ganhava bem, e comecei a estudar soldagem no SENAI, pra aprender a soldar. Eu estava numa linha de empreendedorismo. Eu parei de ficar pagando para serralheiros fazerem meus protótipos e decidi eu mesmo fazer. Construí uma bancada, comprei uma máquina de solda e comecei a fazer no porão da minha casa. Em 2009, eu trabalhei em uma empresa de bicicleta e perdi o medo de mexer com as máquinas. Em 2010, já fora desse emprego, eu trabalhava só na minha oficina, melhorando os protótipos. Naquele mesmo ano, eu quis oferecer o reboque para alguma empresa produzir. Ofereci para várias, e quem acabou aceitando foi a Altmayer, de Santa Catarina, que foi a primeira no Brasil a produzir reboques pra bicicleta.

Você desenvolveu o reboque com eles então?
Sim. Eu passei três meses no sul trabalhando com eles na produção do reboque, a partir de setembro de 2010. Era uma versão um pouco modificada por eles. O reboque começou a ser vendido em março de 2011 pela empresa. Mas a primeira borboleta oficial que eu vendi foi um protótipo. Vendi para um jardineiro que passou na frente da empresa e disse que tinha visto no jornal que tínhamos o reboque. Aí eu puxei a sardinha pro meu lado (risos). Eu disse “ó, tem esse reboque que eles fazem, e tem esse reboque que eu estou desenvolvendo em parceria com eles”. Depois de um tempo o jardineiro voltou e levou o protótipo pra carregar as ferramentas dele. Antes, eu projetava pelo entusiasmo de descobrir funções novas, mas depois do jardineiro eu vi que podia fazer para ajudar as pessoas.

Como foi o concurso promovido pela ong holandesa?

Foi em junho de 2010, um pouco antes de eu conhecer o pessoal da Altmayer. Eu fiquei sabendo pela internet de um concurso de ideias de bicicletas que pudessem ajudar pessoas no Quênia. E eu sempre pensei nisso da África, de ajudar pessoas lá. Naquele momento, eu tive a certeza de que se fizesse um trabalho bem feito, se tirasse boas fotos e soubesse me expressar, eu ganharia o concurso. Foi aí que comecei a pensar em expor minha ideia de uma forma mais organizada. Me inscrevi no concurso, que tinha várias fases. Eles receberam 63 projetos, selecionaram 14. Desses, escolheram 5, só com base nas ideias. As ideias selecionadas eram entregues a estudantes de design e outras especialidades de universidades da Europa e Estados Unidos. A minha foi para a Universidade de Tecnologia de Delft, na Holanda. De acordo com o regulamento, eu fazia parte do grupo. Eu ia enviando as ideias e modificações para eles aqui do Brasil. Após seis meses de desenvolvimento, em junho de 2011, o júri selecionou o reboque, batizado de Kipepeo (borboleta, em Kiswahili), para ser desenvolvido.

Me conta da viagem ao Quênia.
Eu fui para Kisumu, no Quênia, com os estudantes que ajudaram a desenvolver o projeto. Levamos o protótipo desenvolvido pelo grupo e eu carreguei comigo, do Brasil, a última versão do reboque que eu tinha desenvolvido, que foi a mesma que vendi para o jardineiro em Santa Catarina. O plano do grupo era desenvolver o protótipo em uma oficina local que pertencia à ong e pesquisar com os moradores para saber como eles gostariam que fosse o reboque. Nas primeiras duas semanas, ajudei o grupo nesse desenvolvimento, que era uma versão mais fechada, simplificada. Mas aí pedi para ficar uma semana extra no Quênia porque eu queria desenvolver a minha ideia, a que eu já tinha levado comigo. Eu queria fazer um produto versátil.

Qual a diferença da ideia desenvolvida pelo grupo holandês e da sua?
Eles simplificaram a ideia em uma plataforma, onde colocariam caixas para carregar alimentos. Chegando lá, descobrimos que eles não utilizam caixas para transportar as coisas. Eles carregam tudo em sacos. Eles (os estudantes) tiveram que colocar laterais na plataforma para proteger os sacos do contato com o pneu. Para essa ideia migrar para a minha ideia, bastava acrescentar duas peças, e o reboque teria muitos outros usos, inclusive como ambulância.

E como foi desenvolver sua ideia lá?
No décimo quarto dia no Quênia, eu caí de bicicleta e quase quebrei a mão. Não conseguiria fazer o trabalho sozinho – os estudantes tiveram que voltar para os países deles. Quando o grupo foi embora, perguntei ao diretor da ong se não poderia usar a oficina para desenvolver minha ideia. Ele concordou.

Você teve ajuda?
Os funcionários da oficina, pessoas locais, trabalharam comigo. Mas eles não estavam dando muito valor para aquilo, não se esforçavam muito para trabalhar. Eles não estavam sensibilizados com o projeto e não entendiam que aquilo poderia ser um benefício pra eles. Eu ia deixar o reboque com eles para replicarem a ideia. Depois de um tempo, eu deixei de ir pra oficina, liguei pro meu pai e pedi pra ele adiar minha passagem de volta. Ele remarcou para depois de um mês.

E o que aconteceu depois?
Depois que rolou isso, minha ideia passou a ser pegar meus desenhos e o protótipo que eu fiz e ensinar outras serralherias a fazer. Eu estava indo embora da oficina, levando o reboque, e (os funcionários) me disseram que eu não podia levar. E eu disse que sim, que podia, porque eu tinha colocado dinheiro do meu bolso pra fazer o reboque e tinha as notas fiscais. O diretor da ong, que tinha sido avisado pelos funcionários, me ligou. Foi aí que ele começou a prestar atenção no meu trabalho, no potencial da borboleta. Ele quis que eu vendesse o protótipo pra ele, disse que iria me reembolsar e dar mais dinheiro para fazer outro protótipo e para ensinar o pessoal da oficina. Eu disse a ele que estavam de má vontade, e ele foi até lá pra conversar com eles.

Você fez outra versão?
Fiz uma versão inteirinha de tubos de aço com eles, fiz os desenhos e deixei lá. O aço, no Quênia, é muito caro. A madeira é muito mais democrática, e há muitos carpinteiros lá, eles são muito talentosos. Por isso pensei que a versão de aço não vingaria. Mas eu tinha pouco tempo na cidade e não conseguiria fazer a versão em madeira. Então, decidi ir visitar um senhor, administrador de um orfanato, que conheci lá.

Outro uso possível para a carretinha: ambulância

Qual foi o objetivo dessa visita?
Uma das vontades dele e da esposa dele é que o orfanato fosse autossuficiente –hoje eles se mantêm com doações dos Estados Unidos. Certa vez, esse senhor ganhou uma máquina de solda, mas não tinha um lugar para usá-la, então ele construiu um galpão com eletricidade. Pensando nisso, peguei parte do dinheiro que a ong me reembolsou da construção da borboleta e comprei uma morsa pra ele, que é uma das ferramentas mais importantes de uma oficina. Além da morsa, deixei com ele o protótipo que levei comigo do Brasil e deixei também os desenhos do projeto feito com aço. Me comprometi a enviar os desenhos da borboleta feita em madeira. Assim, eles podem replicar a ideia e ganhar dinheiro com ela. A esperança é que eles produzam a borboleta e sejam autossuficientes.

Você já enviou os desenhos?
Creio que no segundo semestre deste ano já possa compartilhar com eles os novos desenhos. Como a nova versão poderá ser em parte desmontada, penso em despachar o protótipo para eles irem testando e acompanhando durante a etapa de construção dos primeiros carrinhos por lá. Tudo indica que eu volte no final do ano ou início do ano que vem para, junto com um alemão e uma moça sul-coreana, fazermos um intercâmbio de ideias com eles e ver como estão usando a kipepeo e ajudar em alguma dificuldade na sua implantação.

Os amigos feitos no Quênia

Essa é a continuação do projeto então?
Lá se pode aprender muito com eles e com a vida simples que eles valorizam e da qual se orgulham. Além disso, senti que são muito mais receptivos a novidades focadas na natureza no social e na economia do que comunidades já habituadas com um modo de vida de consumo insustentável. Por isso eu iria ficar muito feliz em conhecer, antes de voltar ao Quênia, pessoas que têm ideias a compartilhar. Se quiserem participar, podemos viajar juntos e eu poderia apresentá-las aos amigos que fiz.

E como está o uso da borboleta aqui em São Paulo?
Há um empresa em São Paulo interessada na produção da borboleta, agora com modificações aprendidas na África. Assim que tudo for acertado e as borboletas estiverem à disposição, publicaremos no blog reboqueborboleta.wordpress.com e na página do facebook da borboleta. Incialmente a faremos de aço por já termos experiência, o alúminio pode ser usado numa etapa posterior. A versão de madeira também será posta à venda em SP e demais cidades ou estados. Para ela, basta apenas terminar os testes com o protótipo e arrumar uma carpintaria que deseja ser parceira. O objetivo é até meados deste ano os ciclistas as encontrarem, pelo menos aqui em São Paulo.

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